domingo, 18 de julho de 2010

A lenta assimilação do garfo.

Por estranho que pareça, três séculos atrás a humanidade ainda desprezava o garfo. A última peça incorporada ao talher já era conhecida em alguns lugares, embora não possuísse os quatro dentes atuais. Mas várias mesas nobres e plebéias continuavam a julgá-lo um utensílio dispensável. As pessoas comiam com as mãos, usando a faca para trinchar grandes peças de carne e a colher para tomar caldos. Inúmeras cabeças coroadas davam o mau exemplo. Ana da Áustria (1601-1666), mulher de Luís XIII, rei da França, era mulher requintada. Possuía mãos belas e delicadas, louvadas pelos poetas. Mas a vida inteira enfiou os dedos em pratos de ragu, para levar à boca diminutos pedaços de carne.
Ana da Áustria - Mãe do Rei Sol

 Seu filho Luís XIV (1638-1715), rei da França, era homem requintado. Quando sentava à mesa exigia serviço formal. Entretanto, também metia as mãos nos alimentos. Apenas nos últimos anos, pressionado pelo protocolo, empunhou um pequeno garfo nas refeições solenes. Com o imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821) aconteceu a mesma coisa. Ele comia com as mãos, tão rápido que não mastigava direito. Só depois de sua autocoroação, em Paris, passou a usar o novo talher nos banquetes oficiais.


 Foi lenta a assimilação do garfo na França. Algumas pessoas tentaram
introduzi-lo, em diferentes ocasiões. Uma delas seria a elegante Catarina de' Médici, sobrinha do papa Clemente VII, pertencente à célebre família que dominou Florença por três séculos.
 Na primeira metade do século 16, ela casou com o futuro rei francês Henrique II, e desembarcou no país do noivo com o talher completo. O garfo era utensílio corrente na corte em que se educara. Na França, as pessoas o receberam com frieza. A população o considerava uma sofisticação desnecessária. Os cozinheiros diziam que seu metal interferia no sabor dos alimentos. No final do século 16, Henrique III, filho de Catarina de' Médici, atrapalhou o processo de assimilação. Numa viagem a Veneza, ofereceram-lhe um grande banquete em que todos manuseavam o garfo. Ele achou aquilo deslumbrante. Voltando à pátria, tentou obrigar a corte a fazer o mesmo. Rei da França de 1574 a 1589, Henrique III assumira o trono do país com a morte de seu irmão Carlos IX, na falta de outro sucessor familiar. Extremamente apegado à mãe, esquivava-se das moças e vivia cercado de rapazes, conhecidos por mignons. Revelou-se um dos reis mais incapazes e menos obedecidos da França. Muitas das inovações que tentou implantar no país acabaram recusadas, sob a suspeita de serem "afeminadas". O garfo foi uma delas.

Henrique III da França

Na França, a ausência desse talher na mesa não indicava descaso com a etiqueta. No livro Libellus de moribus in mensa servandis, publicado em 1480, Jean Suplice ensinava as pessoas a comer sem ele. As mãos não deviam permanecer muito tempo dentro do prato. Era deselegante.O garfo aportou na Europa através da requintada corte de Veneza. Em meados do século 11, a princesa Teodora, filha de Constantino XI, imperador do Oriente, chegou de Constantinopla para casar com Domenico Silvio. O noivo era doge - primeiro magistrado supremo nas antigas repúblicas italianas - da rica e poderosa Veneza. Teodora assombrou a cidade com sua juventude, beleza e sofisticação. Mas o que mais impressionou a população foi o garfo de ouro com dois dentes, trazido no enxoval. Na verdade, a princesa não o manuseava diretamente. Isso era tarefa dos seus eunucos. Eles espetavam a comida com o instrumento exótico e a depositavam na boca da princesa. Houve quem o considerasse demoníaco. São Boaventura (1221-1274), autor de obras teológicas e filosóficas que lhe valeram o título de Doutor Seráfico, qualificou-o de "castigo de Deus". Moralistas católicos acreditavam que seu par de dentes lembrava o "forcado", instrumento agrícola formado por uma haste e duas pontas, com o qual a iconografia clássica representa o diabo. Criticavam sua função. Asseguravam que o alimento, dádiva de Deus, devia ser levado à boca diretamente pelas mãos do homem. A princesa Teodora argumentava que o garfo era generalizado no Império do Oriente, tão cristão quanto Veneza, mas não obtinha sucesso. Anos depois, ela morreu de peste. Os moralistas interpretaram seu fim como um castigo divino.
Entretanto, o intenso contato comercial de Veneza com o restante do mundo a convertera numa cidade cosmopolita e receptiva às novidades. Pouco depois, a população local assimilou o garfo. Por outro lado, tudo o que Veneza adotava virava moda nas cortes de Milão e Florença, terra natal de Catarina de' Médici. Dessas praças seguia para o restante da Europa. Assim o costume de comer com o garfo se espalhou. No livro Trecentonovelle, escrito entre 1385 e 1392, o intelectual e político toscano Franco Sacchetti descreve da seguinte maneira o comportamento de um conviva num banquete de Florença: "Vieram os macarrões quentíssimos, começou a removê-los e não havia acabado de fazer isso quando saboreou o primeiro bocado com o garfo." Outra prova de que o terceiro talher já era bastante conhecido na Itália do século 15 é ter sido descrito com naturalidade na obra de Bartolomeo Sacchi, humanista da corte pontifícia e prefeito da Biblioteca Vaticana a partir de 1475.

Quanto aos ingleses, no início do século 17 eles ainda a desconheciam a novidade. Em diário da época, o viajante britânico Thomas Coyat ou Coryat fez esta observação: "Os italianos se servem sempre de um pequeno instrumento para comer (...). A pessoa que (...) toca a carne com os dedos ofende as regras da boa educação, é olhada com suspeita e muito criticada. Come-se assim em toda a Itália. Os garfos são de ferro ou aço; os nobres o usam de prata. Adotei este costume e o conservo inclusive na Inglaterra. Meus amigos, todavia, fazem troça (...)." O garfo, como sabemos, descende do espeto e sua primeira versão ostentava apenas dois dentes. Bem mais tarde surgiu o terceiro. Na virada do século 17 para 18, acrescentaram o quarto. Na Itália, apenas os napolitanos não se curvavam à utilidade do utensílio. Continuavam a comer o espaguete com as mãos. O fios longos da massa escorregavam do garfo com dois ou três dentes. Fernando II de Bourbon, o rei de Nápoles, destronado em 1860, adorava espaguete. Mas comia escondido. Detestava ser visto com os dedos na massa¹. Os napolitanos afirmam que foi do seu despenseiro a idéia de incorporar o quarto dente ao garfo. Os sicilianos, igualmente fanáticos pelas massas de fio, apoiaram a invenção. Todo o apreciador de espaguete deveria erguer as mãos ao céu e agradecer o providencial conforto.

J. A. Dias Lopes
¹ Origem da expressão "pego com as mãos na massa".

Um comentário:

  1. maaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaassaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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